sábado, 18 de maio de 2019

O SONHO DOS HERÓIS

"Queria lhe dar uma boa impressão de Clara, mas temo parecer apaixonado e subjugado; então falava mal da moça e via, com pesar, que Larsen balançava a cabeça e concordava. Falou muito e falou sozinho, e por fim sentir-se desgostoso e deprimido, como se o abandonasse um frenesi que, depois de levá-lo a destratar Clara, a desconcertar seu amigo e a se manifestar como um outro tanto e como um desequilibrado, o deixara vazio e exausto" (p. 76-77). Não podemos nos apaixonar para não demonstrar fraqueza e submissão. O clima sexista da obra fez refletir sobre a condição de ser homem em um universo que exige categorias para sermos idênticos ao preceito civilizatório que nos rege: sem choro e sem paixão, apenas seja homem. 


O amor de Emílio Gauna por Clara denúncia a necessidade de se relacionar e dos interditos que o casamento impõe como a troca da liberdade com seus amigos ao tédio televisivo, às conversas sobre filhos, aos planos imobiliários. Gauna se sente pela metade por não poder fazer o que quiser sem dar satisfação ou justificativas por onde vai. Gauna, a expressão do homem normal, não via sentido no teatro, na arte. Fora educado em um ambiente sem requintes. Porém, Gauna disse que "-- É como se antes eu tivesse cego. Você vê ensina a ver" (p. 101). Ao reconhecer Clara como seu amor, Gauna reencontra seu eu interior, mas o fantasma de 27 continua a espreita-lo.

Os heróis O bruxo, Taboada, Clara e Larsen tentam proteger Gauna do seu próprio destino. Assim disse Taboada "Nessa viagem (porque é preciso chamá-lo de alguma maneira) nem tudo é bom e nem tudo é ruim. É uma bela memória e a memória é a vida. Não a destrua". Para não esquecer seria necessário segundo o bruxo "tentar melhorar". Gauna não entendeu muito esse enigma altruísta para salvar suas memórias. Ele não entendia que as pessoas que importavam e verdadeiramente queriam o seu bem estavam por perto. Entretanto, a embriaguez seguida de uma  forte ressaca fez com que Gauna esquecesse de quase tudo. Apesar dos heróis tentarem dissuadir Gauna o anti-heroismo de seus companheiros de bebedeira foi trágica.  

O Sonho dos heróis de Adolfo Bioy Casares (1914-1999) trilha uma miscelânea de sentimentos e desejos que percorrem  desde a oficina aos cabarés de Buenos Aires. Com uma prosa afeita as interrupções do narrador Casares costura a narrativa com tom de suspense para penetrar no leitor a sensação de também fazer parte da história. 


A primeira indagação é quem será essa maldita mascarada que mexeu tanto com Gauna?  O encontro interrompido pela bebedeira descontrolada fez despertar em Gauna o desejo de reviver cada instante do carnaval de 27 perdido entre brigas e soluços. Contudo, seria impossível, as pessoas eram outras, os corpos mudaram, o ânimo passou, novas experiências surgiriam. "Naquele tempo era outra animação, outra a solidariedade humana" (p. 152). A mente se transformou! 

Passado, presente e futuro se entrecruzam como lances de jogo de um hipódromo. Querendo reviver as cenas de 27, refazer o percurso das boates e danças, Gauna sonhou com a eternização daquele instante, mas seria impossível. Seu brilho assim como Baudelaire foi percorrer o impossível, o passado-presente que se construía no futuro. 

Gauna havia mudado, estava casado com Clara, tinha que dar satisfação. O erro ao transgredir seu relacionamento e sair em busca do reencontro com a mascarada o incomodava a cada gole de cerveja. Gauna teve que lidar com o insuportável doutor Velarga que bancava o chefe as custas do dinheiro alheio. Com ar de superioridade e um título que lhe dava um suposto prestígio interrompia e repreendia todos que pensavam diferente da sua mente privilegiada. Fazia questão de normativizar os comportamentos. Seria o doutor um homem semiformado? Ou seria um termômetro que indentificava segundo seu notório saber os semiformados? O percurso se tornou tedioso para todos os envolvidos. "-- O Emílio decide, pois foi ele quem ganhou o dinheiro. Está claro ou querem que eu grite isso em seus ouvidos? Dou-lhe minha anuência, mesmo que ele queira dar voltas pelos mesmo lugares, como um animal de moenda" (p. 149). Gauna estava cansado "de seus deboches e implicâncias. Uma malignidade persistente e grosseira o governava. Quanto aos rapazes eram uns pobres-diabos, aspirantes a delinquentes. Por que demorou tanto para perceber isso? Tinha saído de casa, sem avisar a mulher para andar com um bando de imbecis" (p.155).

Longe da atmosfera kantiana "quero dizer que não há calamidade maior que um homem que não escuta seu próprio juízo" (p. 115). Gauna seguia seu instinto de experimentar ou ainda seguir o destino interrompido naquela noite. Esse "impulso diabólico" o fez se distanciar de sua amada. Em meios as decepções e apáticas de refazer seu percurso a magia se diluiu. O cansaço abateu os heróis, nada mais fazia sentido. Gauna esqueceu, as lembranças  fugazes por mais que tentava pertenciam a outro instante. O herói teve que lutar para se reencontrar.

A fuga de Gauna das convenções sociais e obrigações se dava em reviver essa festa neste tempo e espaço. Apegado aos prazeres, revivia o carnaval de 27 e os olhares sinuosos com a mascarada. Que ao final pode ser qualquer um. O carnaval ao contrário das outras festas desmascara todos. Neste gasto de energia podemos ser quem e o que quisermos. O bruxo tinha razão. Clara devia, sempre é a mulher. Correu atrás dele no carro de um boçal Loiro, típico mauricinho. Não deu tempo! A culpa foi de Clara (a mascarada) que não cuidou de Gauna? Ou será que de fato se cumpriu a sina do destino interrompido? A morte trágica seria inevitável.


Por Francisco Atualpa Ribeiro Filho


Referência
CASARES, Adolfo Bioy. O sonho dos heróis. Trad. Josely Vianna Baptista. 2. ed. Rio de Janeiro: Globo, 2019. 208 p. #tag_experiencias_literarias

2 comentários:

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